Tendo visitado Lima, Vale Sagrado, Machu Picchu e Cusco durante oito dias de viagem pelo Peru – descontados os dois dias de viagem aérea ida e volta partindo de Curitiba -, uma palavra pode resumir a experiência: surpreendente. Em todos os sentidos.
Por mais que conhecesse a civilização inca, a arte e artesanato, a diversidade de relevo e a gastronomia, a constatação “in loco” foi fascinante. Fascínio este que não foi provocado pelo chá ou pela folha de coca necessários para minimizar o “soroche”, a conhecida somatória de efeitos da altitude dos Andes. A fascinação acontece por fatores associados, tais como:
Riquezas naturais
A natureza e relevo de diversidade extraordinária do Peru. A começar por Lima, com suas belas falésias e sua névoa marítima do Oceano Pacífico que, como uma cortina, cobre e descobre a cidade em velocidade assustadora. Tal fato levou os limenhos a chamá-la de “la ciudad que tiene color de panza de burro“ (a cidade que tem a cor de pança de burro).
Em seguida, montanhas que fazem parte da Cordilheira dos Andes, onde há cumes com neve eterna a 5.000 m de altitude, assim como, em altitudes mais baixas, há cumes e paredes verdejantes ou rochosos e estéreis e paredes e vales de rios serpenteantes com vegetação amazônica.
Povo
Hospitaleiro, afável, simpático, humilde, prestativo, mas com um olhar de imensa e profunda tristeza que flecha a alma da gente. A origem indígena é dominante em sua formação física, embora tenha havido miscigenação com povos asiáticos, africanos e europeus. Suas tradições fortemente mantidas, porém mescladas aos costumes impostos pelos espanhóis, que lá desembarcaram em 1531, liderados por Francisco Pizarro.
Das impressões dos sítios arqueológicos visitados no Peru, fica a admirável capacidade de engenharia, arquitetura, matemática, astronomia, hidráulica, física e agricultura dos incas, nome que significa líder, chefe, governador ou rei e que acabou por denominar generalizadamente o povo o qual é constituído por vários outros.
Povo que aprimorou técnicas de plantio utilizando-se de laboratórios ao ar livre, formados por plataformas curvas escalonadas montanha acima, os quais permitiram o desenvolvimento de uma infinidade de cereais e leguminosas.
Possuindo como solo de plantio a inclinação das montanhas andinas, os incas construíam plataformas com base e muro de pedra, em sua maioria de granito. Estocavam a colheita em silos, também construídos na encosta das montanhas. À primeira vista, obras assombrosamente impossíveis de terem sido realizadas por humanos e que geraram indagações famosas como: “Eram os Deuses Astronautas?“ (título do livro do arqueólogo e escritor suíço Erich von Däniken). Mas foram feitas por humanos sim, pelos incas. Como conseguiram? Com a sua filosofia da paciência, do tempo e do compartilhamento.
Aprendizado
Este foi o meu maior aprendizado e motivo de profunda admiração por este povo. Paciência, algo praticamente impossível para uma ariana. Paciência para esperar por uma enchente para deslocar um bloco de muitas toneladas de granito ou paciência para desviar o curso de um rio com o mesmo propósito. Paciência para bater sistematicamente um bloco de pedra com uma ferramenta também de uma pedra menor, até rompê-la. Paciência para deslocar a pedra cortada sobre roletes de madeira (a roda e os animais de tração chegaram com os espanhóis) ou sobre lama. Paciência para polir as arestas dos blocos já assentados em seus devidos lugares.
Sua compleição física, com tórax e panturrilhas avantajados, lhes proporcionou viver em atmosfera rarefeita e levar muito peso nas costas montanhas acima. Paciência para desenvolver sementes e aguardar cinquenta anos pelo resultado.
Povo que praticava o compartilhamento como norma comportamental, tanto que, quando os famintos espanhóis alcançaram as cidades nas alturas andinas, compartilhavam seus alimentos estocados e seu ouro e, diante da avidez dos conquistadores pelo metal, pensavam que eles o comiam e o ofereciam em pratos. Povo que respeita a natureza, que pede licença às montanhas e as agradece pelo que lhes proporcionam.
Arte
A maravilhosa decoração barroca, colonial, espanhola, peruana ou andina de conventos, monastérios, igrejas, criptas, capelas e palácios. Como arquiteta e amante da arte, fui ao Peru ciente de tudo o que queria ver e, tudo se revelou extraordinariamente superior ao que eu tinha como referências fotográficas.
O casamento de culturas contribuiu para a vasta herança de monumentos históricos, igrejas e sítios arqueológicos em todo o território e, dentre os que visitei, não os nomearei na totalidade para não me estender.
Como católica, frequento igrejas sim, mas confesso que sou movida por extrema curiosidade artística em busca delas. Não sou “carola”, como já fui tachada. Assim como um amigo padre muito querido para o qual fui enviando fotos das maravilhas religiosas visitadas, me disse via WhatsApp:
– “Deste jeito vais virar freira.“
Brincadeiras à parte, voltando à arte religiosa do Peru vista em Lima e Cusco e sua profusão de entalhes e detalhes dourados, prateados, policromados ou “ in natura“ , em grande maioria de cedro proveniente da floresta amazônica do Peru e as pinturas em afresco, telas, em tecidos de sacaria, assim como os famosos quadros “cusquenhos” e suas rebuscadas molduras douradas nos revelam a religiosidade e devoção de um povo cujo talento foi muitíssimo bem explorado pelos evangelizadores espanhóis.
Como método de evangelização, utilizavam-se de Vias Sacras com figuras humanas com biotipo adaptado aos padrões locais e em escala natural e a representação pictórica de santos e da Sagrada Família em cenas naturais e normais do ser humano como, por exemplo, a representação de Nossa Senhora a Virgem Maria, grávida.
Gastronomia
Além da filosofia, cultura e relíquias arqueológicas, a gastronomia do Peru é riquíssima e conceituada mundialmente, tendo como provedores o Oceano Pacífico e tudo o que a agricultura inca proporcionou em termos de grãos, leguminosas e frutas. Uma incorporação de culinária nativa, espanhola e asiática somada a um primor de execução e apresentação que tornam qualquer refeição, nos mais variados locais, uma experiência única de excelência de paladar.
Dentro das minhas inserções culinárias cabe relatar a do jantar e degustação de sobremesas típicas nas ruínas de Huaca Pucllana, sítio arqueológico cuja construção piramidal era um dos mais importantes centros cerimoniais dos povos pré-hispânicos do Peru.
Experiências
Jantar no Rosa Náutica, local cujo acesso é feito através de um píer que avança oceano adentro, com lojinhas atrativas e arquitetura encantadoramente romântica em madeira. A mesa na janela com as ondas bravas batendo nos pilotis, a comida, o serviço e a vista da cidade acima das falésias, colaboraram para uma experiência de cunho cinematográfico. A expectativa de ser um “pega turista” se desvaneceu ao entrar no ambiente com decoração de inspiração francesa, piano ao vivo, toalhas e guardanapos impecavelmente engomados, momentos agradavelmente memorizados.
Almoçar no L’Eau Vive, a um passo da Catedral de Lima, onde a comida saborosíssima é preparada pelas próprias freiras da congregação francesa cujo convento é no mesmo prédio antigo onde funciona o restaurante simples com toque caseiro e acolhedor.
E como deixar de citar o jantar no Belmond Hotel Monastério, no Restaurante El Tupay, com seus arcos delimitando espaços intimistas e aconchegantes. Uma noite sublime, com ópera magistralmente apresentada por tenor e soprano ao som de maravilhosas cordas de músicos virtuoses. O mosteiro de 1592 é Patrimônio Nacional e tem em sua capela o atrativo principal com todo o rebuscamento do barroco folheado a ouro destacado pelo contraste de suas cadeiras forradas em veludo vermelho. Sob luz de velas, a comida incrível é servida em porcelana Villeroy & Boch, instalada no também atraente prédio barroco da antiga abadia alemã de Mettlache e talheres em prata.
Cabe a pergunta: o critério da escolha dos locais é pela comida ou pelo local? O visual, a história e a arte contam muitos pontos e, se a comida for boa, a experiência fica completa. Como por exemplo, almoçar uma pizza com mesa em um balcão. Ou até mesmo em um “muxarabi“, herança árabe trazida pelos espanhóis, com vista para a Praça das Armas e Catedral de Cusco.
Simplicidade
Como deixar de falar do jantar com música e dança folclórica na última noite, também em Cusco? Restaurante Tunupa, também com vista, agora noturna, para a Praça das Armas e Centro Histórico. Longe de ser “pega turista”, apresentação impecável, com guarda-roupa variado e riquíssimo e, como prêmio, comida maravilhosa servida em cinco estações de buffet. Fazendo justiça, houve refeições maravilhosas em locais não tão históricos, mas que foram incríveis, tais como (sou vegetariana) um ceviche de legumes no Mango no Shopping Larcomar, ou uma lasanha de legumes criada na hora a partir do menu de pizzas no Mama Jama ou buffet à beira de estrada no Vale Sagrado, que não deixaram nada a dever a nenhum “super bacana top master plus”, seja ele estrelado por hotelaria ou por Michelin.
Machu Picchu
Fui com a certeza de me encantar ainda mais pelos métodos construtivos, organização urbana e características arquitetônicas da cidadela. Construído a 2.453 m de altitude pelo imperador inca Pachacutec, o Machu Picchu é considerado Patrimônio Mundial da Humanidade e uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno.
Para meu total espanto, fui totalmente seduzida pelas montanhas! Quando falavam sobre a energia do local, minha reação era de certo ceticismo considerando até certo exagero. Mas não é! Definitivamente há uma energia vibrante no local. As montanhas ainda estão me chamando e eu morrendo de saudades delas. Parecem pulsar ou realmente pulsam! Mais uma vez, digo que não é o efeito do chá de coca ou da folha não! A atmosfera mágica ainda me provoca sensação de planar e de querer me incorporar ao local.
Nosso grupo de doze pessoas e um guia curitibano foi agraciado com um guia cusquenho, que pode ser definido simplesmente como fantástico. Inca, com faculdade de história e antropologia e estudando xamanismo, a mais antiga prática espiritual, médica e filosófica da humanidade. A cada explanação nos sítios arqueológicos e tour por locais do período colonial, era como se soasse um gongo tibetano dentro de mim! A filosofia inca, sempre dando lição em cima de lição.
Paciência! Paciência! Paciência!
Cerimônia
Durante os passeios que antecederam a visita ao Machu Picchu, ele nos dizia que, se sentisse o grupo harmônico, coeso e sintonizado, faria uma cerimônia no complexo. E fomos presenteados mais uma vez não só pelo tempo, que por instantes se mostrava pronto a desabar águas torrenciais, mas que se manteve ensolarado e com céu azul anil por quase a totalidade do período, mas com a tão esperada cerimônia.
Sentados em círculo no gramado, conferiu-nos toda uma explicação histórico-filosófica e, ao nos colocarmos em pé novamente, iniciou o cerimonial. Terminado, alguém disse: ‘’ele é espírita’’, enquanto outra voz disse que parecia reiki. Pois para mim, em determinado momento pareceu que estávamos rezando o Pai Nosso. Enfim, foi uma solenidade onde as energias, dogmas, religiões e filosofias fizeram simbiose culminando no abraço coletivo e caracterizando a universalidade do bem maior: o amor.
Cruz Inca
Cabe aqui, sucintamente, a simbologia inserida na Cruz Inca ou Chakana_Chaka (ponte) com hanã (alto). Com vários significados e uma constatação analítica das esferas da vida, há indícios de que já era usada há mais de cinco mil anos. Inspirada na constelação do Cruzeiro do Sul, representa uma escada de quatro lados, que forma um quadrado e possui quatro pontos principais, nas suas partes maiores: as quatro estações do ano, os quatro pontos cardeais e os quatro elementos fundamentais da vida (terra, água, fogo e ar). Ao todo, a cruz Inca possui doze pontos externos, cada um dos quais são divididos em terços representando:
- Três mundos: o mundo inferior, dos mortos; o mundo em que vivemos, dos vivos; e o mundo superior, dos espíritos.
- Três animais: os três mundos acima são representados por um animal, o mundo inferior pela serpente, o mundo dos vivos pelo puma e o mundo dos espíritos pelo condor.
- Três afirmações: eu trabalho, eu aprendo e eu respeito.
- Três condutas: não roubar, não mentir e não ser preguiçoso.
- Três sistemas de trabalho: ajuda ao próximo, “Hoje por mim amanhã por ti”; ajuda ao coletivo e ajuda à sociedade por meio de taxas.
Símbolos
A cruz, quando dividida em dois, simboliza a dualidade: sol e lua, dia e noite, masculino e feminino, polo positivo e polo negativo. A linha horizontal (do leste ao oeste) representa o ciclo da vida, o nascimento e a morte, o nascer do sol e o pôr do sol. A linha vertical (do norte ao sul) representa a reencarnação, o espírito trabalhando na terra para depois retornar ao mundo superior. A Chakana também encerra uma profunda relação entre o homem e o mundo espiritual, permitindo ordenar os pensamentos na busca de contato com as vibrações do Cosmos.
Resumindo: viagem para o Peru extraordinariamente maravilhosa! Experiência de profundo aprendizado filosófico, alimentada pelos produtos da agricultura inca, colorida por seu fabuloso artesanato, saciada pela arte barroca e acalentada pelo sorriso humilde dos habitantes das montanhas. Classifico como um “divisor de águas” ou, mais apropriado, “divisor de montanhas”, a filosofia dos incas, que possuíam como ferramenta de investigação a observação paciente e metódica, necessária para primeiro sobreviver e depois viver. Eu faria uma alteração para: sobreviver e viver simultaneamente! Viajando! E muito!
Relato da viajante Maysa Ceriolli.